terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Dos corcel as feições são naturais,
pois uma égua o concebeu dum grifo;
penas e asas ao pai tinham iguais,
membros anteriores, cabeça e grifo;
no resto do corpo imitava mais
a mãe, e era o seu nome hipogrifo;
raros, nos montes Rifeus são criados,
que ficam muito além dos mares gelados.

Ludovico Ariosto, Orlando Furioso, IV, 18.
(trad. Margarida Periquito)
Não é o corcel miragem, mas real:
Uma jumenta o concebeu de um grifo.
Em cabeça, asas, cara ao pai é igual
E em pluma e pés frontais, que formam grifo.
Noutros membros parece tal e qual
A mãe, e leva o nome de hipogrifo.
Só nasce muito além do mar de gelo
Lá nos montes Rifeus, mas raro é vê-lo.

Ludovico Ariosto, Orlando Furioso, IV, 18.
(trad. Pedro Garcez Ghirardi)
Non è finto il destrier, ma naturale,
ch'una giumenta generò un grifo:
simile al padre avea la piuma e l'ale,
li piedi anteriori, il capo i il grifo;
in tutte l'altre membra parea quale
era la madre, i chiamasi ippogrifo;
che nei monti Rifei vengon, ma rari,
molto di là dagli aghiacciati mari

Ludovico Ariosto, Orlando Furioso, IV, 18.

domingo, 6 de janeiro de 2013

"Tenha a bondade, meu senhor, de examinar e testar essa bolsa." Enfiou a mão no bolso da casaca e, puxando por dois fortes cordões de couro, tirou um saco de marroquim resistente, de tamanho médio, bem costurado, e entregou-o a mim. Enfiei a mão e tirei de lá dez moedas de ouro, e mais dez, e mais dez, estendi-lhe rapidamente a mão: "Feito! Negócio fechado! Em troca da bolsa, pode levar minha sombra." Ele apertou minha mão, ajoelhou-se resoluto à minha frente e vi como ele, com admirável habilidade, foi desprendendo suavemente minha sombra da relva, começando pela cabeça e indo até os pés; e, por fim, depois de enrolá-la e dobrá-la toda, guardou-a mais uma vez diante de mim e retirou-se indo em direção das roseiras. A mim pareceu tê-lo ouvido rir baixinho, de si para si. Eu, todavia, segurava firmemente a bolsa pelos seus cordões; ao meu redor a terra estava toda ensolarada e eu ainda não tinha noção de nada.

Adelbert von Chamisso, A história maravilhosa de Peter Schlemihl
(trad. Marcus Vinicius Mazzari)


quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

[...] minha própria existência, que ainda não consegui justificar. Mais do que isso: ainda não a pude constatar. E mesmo que algum dia eu a possa sentir e positivar, é fora de dúvida que nunca a poderei demonstrar. O que, de resto, pouco adiantaria. Por enquanto, ora a coloco num estado germinal, ideia preparatória de algum plano que virá a ser, situação provisória de um fantasma interino -- ora a coloco melancolicamente, na foz de um rio que dentro de alguns metros já não existirá, desmanchado no abismo do mar. Muitos acharão isso estranho e pensarão que ando entregue a fantasias especiosas. Mas creio que ninguém pensa de maneira contrária, pois a verdade é que nunca pensaram sobre isso, o que afinal é uma leviandade sem perdão. Não encontro ninguém para falar de tais negócios, e sou obrigado a recorrer a velhos livros, e encontro todos, poetas e profetas, perplexos da mesma angústia.

Gerardo Mello Mourão, O valete de espadas

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Destrói as antigas habitações de homens e as antigas habitações de almas; as coisas mortas são espelhos que deformam.
Destrói, pois toda criação vem da destruição.
E pela bondade superior, é preciso exterminar a bondade inferior. E assim o novo bem surge saturado de mal.
E para imaginar uma nova arte, é preciso quebrar a arte antiga. E assim a nova arte parece uma espécie de iconoclastia.

Marcel Schwob, O livro de Monelle
(trad. Claudia Borges Faveri)